A escolha das palavras e os efeitos de sentido
Léxico. Palavrinha curta e que, às vezes, pode assustar por seu feitio teórico. Então para simplificar as coisas, lembre-se que léxico, em uma explicação bastante simplória, mas correta, é algo que pode ser considerado sinônimo de vocabulário, repertório de palavras.
O segundo passo importante para compreender o que o termo léxico significa, é saber que o conceito está ligado a um conjunto de palavras associadas a um determinado grupo cultural.
Neste texto apresentaremos como o uso de certas palavras impacta nos efeitos de sentido empregados em um texto. Isto é, como a podemos usar diferentes tipos de expressões para traçar diferenças entre personagens, mas também para localizá-los regionalmente, bem como criar provocações sutis mas grande impacto literário e estético.
Como construir personagens de determinados grupos culturais, sem descrever estas características
Imagine a seguinte expressão: “Evite andar descalço, pois isso reduz o risco da tungíase, que é uma dermatozoonose mais comum do que se imagina”. Ora, mesmo que você não saiba exatamente o que significam todos os termos, sabe que quem está falando é algum profissional da área da saúde, possivelmente um médico.
Se esta mesma frase fosse dita do seguinte modo, “Vê se não anda descalça menino, desse jeito você vai pegar um bicho-de-pé, que é aquela doença da pulguinha”, você saberia que é um tipo de pessoa diferente do universo cultural da medicina. O vocabulário indica esta última frase indica que pode ser uma mãe ou pai, uma avó ou avô falando com uma criança.
Veja, o léxico tem a ver com isso. É vocabulário, mas em um sentido bastante específico, no sentido de que ele situa qual contexto está se passando em uma determinada narrativa.
Um diálogo entre um sertanejo e um médico da cidade seria totalmente suficiente – adequando o discurso a cada um desses mundos – para descrever quem está conversando sem a necessidade de quaisquer outras descrições.
Em uma narrativa ficcional, o escritor pode lançar mão de vários e diferentes léxicos e, consequentemente, de estratégias para construir efeitos de sentido desejados em sua estória. O importante é ter consciência desses processos e usá-los em favor de sua escrita criativa.
Conheça diferentes tipos de figuras de linguagem lexicais
Platão e Fiorin, na conhecida obra Para entender o texto. Leitura e redação (2000), apresentam alguns tipos de conjuntos lexicais (p. 93).
- Gírias: rangar (tomar uma refeição); não embaça (não perturba);
- Regionalismo: piá (menino no Sul do Brasil); bergamota (mexerica no Rio Grande do Sul);
- Estrangeirismos: spread (taxa de risco que se paga sobre um empréstimo); software (programas de computador);
- Arcaísmos: festinar (apressar); físico (médico);
- Neologismos: televisar (transmitir para a televisão); principismo (atitude de intransigência na defesa do princípio); informatizar (submeter a tratamento informático).
Os efeitos de sentidos na escolha das palavras
Na literatura, mas não somente (isso pode ser visto também na dramaturgia), tudo o que temos a oferecer aos leitores são, antes de histórias, palavras. Elas são a fachada de nosso texto, a forma como os leitores vão produzir sentidos para além do significado imediato de cada termo.
Vejamos um exemplo, recorrendo a Macunaíma, de Mário de Andrade.
Senhoras:
Não pouco vos surpreenderá, por certo, o endereço e a literatura desta missiva. Cumpre-nos, entretanto, iniciar estas linhas de saudades e muito amor, com desagradável nova. É bem verdade que na boa cidade de São Paulo – a maior do universo, no dizer de seus pro lixos habitantes – não sois conhecidas por “icamiabas”, voz espúria, senão que pelo apelativo de Amazonas; e de vós, se afirma, cavalgardes ginetes belígeros e virdes da Hélade clássica(…).
Nem cinco sóis eram passados que de vós nos partíramos, quando a mais temerosa desdita pesou sobre Nós. (…) O que vos interessará mais, por sem dúvida, é saberdes que os guerreiros de cá não buscam mavórticas damas para o enlace epitalâmico; mas antes as preferem dóceis e facilmente trocáveis por pequeninas e voláteis folhas de papel a que o vulgo chamará dinheiro – o “curriculum vitae” da Civilização, a que hoje fazemos ponto de honra em pertencermos.
Cartas pras icamiabas, Mário de Andrade, Macunaíma, o herói sem nenhum caráter
Para quem nunca leu Macunaíma, é importante ressaltar que neste trecho o narrador abandona o tom coloquial e a linguagem espontânea que caracteriza o texto até então e passa a utilizar essa maneira pernóstica de se expressar.
O efeito de sentido que se busca com essa estratégia, tal como nos explicam Platão e Fiorin, visa “uma intensão de ridicularizar o modo de vida da grande cidade e esse efeito(…) é conseguido, no caso, não só pelo conteúdo significativo do que ele diz mas também pela escolha lexical” (p. 94).
Essas estratégias ficam evidenciadas, por exemplo, no uso de termos como “missiva” no lugar de carta, no emprego do pronome “vós” em vez de você, entre outros termos. Há ainda, de maneira mais subterrânea, uma crítica a escritores pré-modernistas, como Rui Barbosa e Olavo Bilac, cuja literatura se valia desse tipo de vocabulário.
Possivelmente se você já escreveu alguma ficção, ainda que não tenha publicado, certamente já fez uso desses recursos. O que pretendíamos neste texto era evidenciar como isso funciona de maneira mais descritiva, para você, na sua escrita criativa, seja capaz de ter maior consciência sobre esses processos.
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