Robertson Frizero

Escritor, tradutor, dramaturgo e professor de Criação Literária

Maria Neta de Sousa Dias Vieira

Fui o primeiro a testemunhar o desfecho de uma vida jovem desperdiçada. Naquele dia, o saldo de suas maldades começava a ser apurado, depois que crescera tocando o terror.

Acostumáramos a sofrer seus despropósitos. Enquanto ele, a cada dia, se superava nas traquinagens, dissimuladas com perfeição. Ainda assim, a cena que via agora, fotografada para sempre em minha memória, deixou uma marca profunda.

O rapaz “bem nascido”, como se dizia, implorava que o deixasse subir na minha pobre carroça puxada por um burro, a caminho do trabalho, perto da sua suntuosa residência. Ele saíra de trás da cerca para a margem visível da estrada enquanto passávamos. Esfolado e besuntado em seus próprios excrementos. Havia escapado, não soube como, do cerco surpresa da polícia cedo da noite, em sua propriedade.

Dormira, ou não, ao relento do chão estorricado, escondido sob algum arbusto relutante. Ele, que nos seus dias de glória, como um rei cruel, mandava e desmandava nos seus comparsas e nas suas vítimas, aprisionadas às suas chantagens e torturas. Para ele tudo não passava de diversão com muito prazer e a segurança de que jamais seria punido. Tinha a proteção do dinheiro do pai, a quem todos respeitavam como benfeitor e provedor de favores.

A notícia do esfacelamento da quadrilha se espalhou. A população se perguntava como aquilo fora possível, dentro de um pacto há muito convencionado pelos costumes do lugar, naquela vida severina. Alguns se lembraram de um cavalheiro simpático que aparecera há algum tempo por ali. Conquistara-os com muita empatia. Todos o queriam, sem exceção, para as festas em família, as quais aquela gente não dispensava, cada um à sua maneira, na forma que seus recursos ofereciam. Ninguém se esquecera da pessoa compreensiva, de bom papo e curiosas histórias, sempre pronta a ajudar nas tantas necessidades. Dava-se tão bem com os donos das fazendas, quanto com os pobres. Mas, havia partido sem despedida há algum tempo. Foi assim que nasceu ali uma lenda contada de boca em boca.

O sertão fora visitado por um detetive especial, e este desvendara segredos e colecionara provas para a captura dos abusadores da paz. O jovem e “bem parecido” chefe ainda andou a solta por um tempo. Porém, não demorou a perder o pai, atormentado pela culpa de não ter conseguido domar o filho na sua índole. O pobre velho sabia, como todos ali, que depois da sua partida o filho não escaparia mais.

A autora

Maria Neta de Sousa Dias Vieira, escritora e autora do conto Saldo
Maria Neta de Sousa Dias Vieira, escritora e autora do conto Saldo (Imagem: Arquivo pessoal)

Maria Neta de Sousa Dias Vieira é autora do romance Conchas em Rubi, publicado pelo selo Página Nova. Tem participações em antologias com contos microcontos e poemas. Atualmente trabalha na escrita de novo romance e integra grupos de autores como Café do Escritor, Clube de Criação Literária e Literatura Mínima.

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Contos do Clube

Contos do Clube é um espaço aberto no site do escritor Robertson Frizero para a publicação de contos produzidos por diversos autores que participam do Clube de Criação Literária e do projeto Literatura Mínima.

Roberson Frizero é escritor, tradutor, dramaturgo e professor de Criação Literária. É Mestre em Letras pela PUCRS e Especialista em Ensino e Aprendizagem de Línguas Estrangeiras pela UFRGS. Sua formação inclui bacharelado em Ciências Navais pela Escola Naval (RJ). Seu livro de estreia, Por que o Elvis Não Latiu?, foi agraciado pelo Prêmio CRESCER como um dos trinta melhores títulos infantis publicados no Brasil. Seu romance de estreia, Longe das Aldeias, foi finalista do Prêmio São Paulo de Literatura, do Prêmio Açorianos de Literatura e escolhido melhor livro do ano pelo Prêmio Associação Gaúcha de Escritores – AGES. Foi, por três anos consecutivos, jurado do Prêmio Jabuti, da Câmara Brasileira do Livro – CBL.

4 COMMENTS

  1. Texto maravilhoso! De fácil leitura.
    Parabéns, minha querida! Maria Neta.
    Continue a nos prestigiar com seus contos. Um grande abraço

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