Como estar atento aos defeitos de argumentação – Parte II
Neste texto damos continuidade à primeira parte deste debate sobre defeitos de argumentação na escrita ficcional. Estar atento a esses detalhes é fundamental para a construção de personagens e suas personalidades, pois um personagem consistente não deve apresentar contradições entre o que ele faz e seu perfil “psicológico”.
E onde os argumentos entram? Bem, um personagem que se propõe a ter tal ou tal comportamento ou posicionamento deve ter argumentos – comportamentais e de fala – que sejam verdadeiros dentro do enredo da história.
Complementando nossa discussão, abordaremos dois defeitos de argumentação mais ou menos comuns em textos de escritores inexperientes, mas que podem ser facilmente corrigidos: 1) uso de noções ou conceitos de forma imprecisa; 2) exemplos ou ilustrações contraditórias com a premissa.
O uso dos conceitos, mas nem tanto
Um dos principais problemas de argumentação em uma narrativa diz respeito ao uso equivocado de conceitos. Isso pode ser uma coisa mais pontual ou um erro de premissa mais profundo.
Imagine que seu texto ficcional é um romance histórico e ele passa em um cenário medieval, mas cujos eventos ocorrem na América pós-descobrimento. Ora, as grandes navegações em direção ao “novo mundo” datam da virada do século XV para o XVI (já no período histórico da Modernidade), ou seja, fazer uma ambientação medieval neste contexto é um erro conceitual de premissa.
Esse tipo de erro pode ser bem mais elementar e, portanto, mais fácil de corrigir. Imagine que você queira retratar uma distopia autoritária, mas ao invés de chamar o sistema político de autoritarismo, você o denomina como comunismo? Trata-se de um erro conceitual terminológico.
É evidente que é possível haver governos autoritários comunistas (assim como capitalistas), mas, a rigor, o termo se refere a um regime econômico no qual os sistemas de produção pertencem ao Estado e não à iniciativa privada.
Esses deslizes têm uma explicação lógica: trata-se de uma significação subjetiva – isto é, a partir das crenças de cada sujeito – de conceitos que são relativamente estáveis e cientificamente postulados.
Sempre se pode usar essas estratégias de forma consciente, para construir um personagem volátil e de reflexão vulgar, por exemplo. O importante é que o autor tenha domínio racional do que está fazendo e desenvolva um texto de forma consistente.
Defeito de exemplo ou ilustração na ficção
Usar exemplos é sempre uma ótima maneira de ilustrar e apresentar um argumento. Em um diálogo ficcional esta pode ser uma estratégia bastante efetiva.
Nestes casos é fundamental que a introdução ao tema implique, necessariamente, a conclusão a que o exemplo pretende ilustrar. Vejamos um caso muito claro apresentado no livro que inspira esta série de textos sobre argumentos, chamado Para entender o texto, de Platão e Fiorin.
Eram oito da noite: horário de verão. O sol, aos poucos caindo, parecia mergulhar nas profundezas do mar, deixando atrás de si um rastro de cores indefiníveis e uma atmosfera de mistério e compenetração. Contagiado por aquele momento de grandioso espetáculo da natureza, acabei por concluir que a vida é cheia de altos e baixos e que precisamos enfrentar com coragem as dificuldades e exultar com vibração diante do sucesso.
(PLATÃO; FIORIN, p. 211)
O que este texto mostra, e os autores Platão e Fiorin destacam na referida obra, é que a conclusão está descompassada com a premissa. Isso porque a conclusão faz alusão ao fato de que “a vida é cheia de altos e baixos”, mas todo o texto que é apresentado antes faz uma ode ao pôr do sol como “grandioso espetáculo da natureza”.
Não há, neste caso, unidade entre a contextualização da cena e o desfecho, que fica mal explicado. Este defeito de argumentação fragiliza o enredo e faz a história e seus desdobramentos perderem força.
Por fim, caberia ressaltar que convém sempre fugir de fórmulas moralizantes quando se trata de escrever ficção. O mais importante é sempre tentar fugir da vala comum da solução fácil. É possível criar reviravoltas em uma estória ou narrativa, sem perder a unidade da argumentação.
Faça da literatura seu exercício diário de mostrar que entre o branco e negro há incontáveis tons de cinza!
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