Robertson Frizero

Escritor, tradutor, dramaturgo e professor de Criação Literária

Robertson Frizero

Sim, há páginas que sangram — e isso é bom.

Se um livro não nos fere, talvez metade de sua razão de existir tenha desaparecido. Literatura é estranhamento, espanto e emoção. Obra literária boa é aquela que te agarra pelo colarinho e grita para quem quiser ouvir: E então, meu caro? Por essa você não esperava. Mas agora é tarde para desviar os olhos: coma cada palavra e absorva-as ainda enquanto a cabeça dói, o coração aperta e as palavras não estão prontas para serem regurgitadas.

Lembro de quando li pela primeira vez Crime e Castigo, de Fiódor Dostoiévski. Eu era ainda bem jovem — e falo de algumas décadas antes de o autor tornar-se parte tão importante de minha vida como escritor. O livro chegou em minhas mãos por indicação de um amigo que, descobri muito tempo depois, jamais leu o livro. Naquela época, fazia parte de nossa imaturidade fingir erudição — quando isso é consequência de uma vida de estudos, leituras e reflexões, eu aprenderia isso nos meus anos de maturidade. E ele, para sentir-se melhor do que eu, pretensamente disse que não considerava culto quem não tivesse lido o romance do grande russo.

Minha santa tolice felizmente me levou à biblioteca de nossa escola e à retirada de Raskólnikov — nem me passou pela cabeça olhar a ficha de empréstimos para verificar se meu amigo erudito havia mesmo lido a obra. E…que pancada! Aquele texto desceu-me na cabeça como uma machadada; ainda lembro do horror na cena em que o jovem soberbo comete o crime brutal, pensando-se acima da moral e das leis dos homens comuns. E sofri com ele toda a derrocada moral de carregar a culpa pelo mais ancestral e hediondo dos delitos. Com Raskólnikov, senti a bondade consoladora de Sônia e encontrei nela espelhada a força do perdão; onde outros viram no romance mera propaganda religiosa de Dostoiévski, vislumbrei como é essencial para a humanidade a figura de um ser superior diante do qual todos somos diminutos — esse pensamento é a antítese e o antídoto do mal que abarcou Raskólnikov e conduziu-o tortuosamente ao cárcere, físico e mental, arrastando eternamente o peso daquela machadinha ensanguentada… E o melhor de tudo isso: aprendi os perigos da soberba e a importância da humildade sincera sem ter que viver na carne a dor moral do protagonista de Crime e Castigo.

Raskólnikov ajoelha-se diante de Sônia e confessa tudo…

Passei a ver aquele velho amigo com outros olhos. Percebi, por suas atitudes, que ele talvez não tivesse lido o mesmo livro que eu — e eu estava certo nas minhas suspeitas — ou simplesmente não havia compreendido a mensagem.

A lição de Dostoiévski foi moldando meu olhar sobre a Literatura. Quando, anos mais tarde, tive que mergulhar em sua correspondência por força da profissão, conheci melhor o homem por trás do escritor e vi que, nele, espelhava-me — ele usava a dor para fazer-nos sangrar ao ler seus livros. E decidi fazer de minha Literatura também um instrumento de aprendizado para meus leitores. E não sem os fazer sofrer um pouco também, admito.

Não, não creio ser superior a ninguém — Raskólnikov e Sônia ensinaram-me bem sobre isso — , mas penso ser missão de todo escritor conduzir os homens, por sua obra, a alguma reflexão que os faça melhores do que quando abriram as páginas do livro. Tento fazê-lo desde Por que o Elvis Não Latiu?, minha forma de mostrar aos pequenos — e aos pais e educadores — que todos temos direito ao luto e à saudade; com Longe das Aldeias, em que discuto os efeitos da guerra na vida das pessoas comum e os perigos da perda de humanidade que os conflitos propositalmente provocam nas pessoas; em Socorro Furtado, alertando os apaixonados sobre as deletérias possibilidades do amor-idolatria; e em Merci, romance-poema em que uso da leveza para falar sobre a capacidade dos homens tanto de sermos bons quanto sórdidos na busca de nossos desejos tão passageiros… Mesmo em minha poesia e em meu teatro, gosto de pensar que estou contribuindo de alguma forma, verso a verso, cena a cena, com a construção de melhores sentimentos nos corações.

“Não faça isso, Frizero, digo, Raskólnikov!”

E, não, não é soberba minha, nem me acho acima do bem e do mal por me verem como um erudito — coisa que nunca clamei ser, aliás. Mas, confesso, caros leitores, membros do júri e autoridades policias: tenho usado minha pena como uma machadinha, e impunemente.

Robertson Frizero, lá pelas 08h30 do Dia do Aniversário de Machado de Assis, em 2024.

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Roberson Frizero é escritor, tradutor, dramaturgo e professor de Criação Literária. É Mestre em Letras pela PUCRS e Especialista em Ensino e Aprendizagem de Línguas Estrangeiras pela UFRGS. Sua formação inclui bacharelado em Ciências Navais pela Escola Naval (RJ). Seu livro de estreia, Por que o Elvis Não Latiu?, foi agraciado pelo Prêmio CRESCER como um dos trinta melhores títulos infantis publicados no Brasil. Seu romance de estreia, Longe das Aldeias, foi finalista do Prêmio São Paulo de Literatura, do Prêmio Açorianos de Literatura e escolhido melhor livro do ano pelo Prêmio Associação Gaúcha de Escritores – AGES. Foi, por três anos consecutivos, jurado do Prêmio Jabuti, da Câmara Brasileira do Livro – CBL.

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