Robertson Frizero

Escritor, tradutor, dramaturgo e professor de Criação Literária

Estreamos hoje uma série de textos a partir do magnífico livro de David Lodge, Arte da ficção (Porto Alegre: L&PM, 2022), debatendo os capítulos trazidos na obra. Para situar os leitores nesta série, sempre que abordarmos seções da obra colocaremos na chamada a expressão “Arte da ficção” e o tema em debate.

Nada melhor, então, do que (com o perdão do clichê) começar pelo começo. É assim mesmo que o próprio Lodge justifica a escolha de abrir o livro a partir dessa discussão.

“Comecei com ‘O começo’ e sempre tive a intenção de encerrar com ‘O fim’”, escreve o autor no prefácio da coletânea que resulta, de um lado, do curso que ministrou por décadas na Universidade de Birmingham e, de outro, dos artigos que escreveu no jornal The independent on Sunday.

Bem ao longo de 50 semanas, às vezes continuamente, outras não, vamos apresentar debates atinentes a cada um dos capítulos desse volume. Mãos à obra!

Emma e O bom soldado, dois começos fabulosos

Lodge principia o primeiro capítulo de seu livro com duas fascinantes citações, a primeira do romance Emma, de Jane Austen, e o segunda com o começo de O bom soldado, de Ford Madox Ford.

São dois sublimes começos, por razões análogas e outras distintas, mas cuja discussão só será viável se os conhecermos. Por isso os reproduzimos a seguir.

Emma, Jane Austen, 1816

Emma Woodhouse, elegante, esperta e rica, com uma casa confortável e disposição alegre, parecia reunir algumas das maiores bênçãos da existência; e vivera quase vinte e um anos no mundo com muito pouco a lhe causar angústia ou irritação.
Era a mais jovem das duas filhas do mais afetuoso e indulgente dos pais e, devido ao casamento da irmã, tornara-se a senhora da casa desde muito jovem. Sua mãe morrera há tanto tempo que ela não tinha mais que uma vaga lembrança de seus carinhos, e seu lugar fora ocupado pela governanta, uma excelente mulher que lhe dedicara quase o mesmo afeto da mãe.
Srta. Taylor passara dezesseis anos com a família de Mr. Woodhouse, mais como amiga do que como governanta, muito afeiçoada às duas filhas, mas particularmente à Emma. Entre as duas havia uma intimidade como a de irmãs. Mesmo antes de Miss Taylor deixar de manter o cargo nominal de governanta, a doçura de seu caráter quase a impedia de impor alguma disciplina; e depois que a sombra de autoridade já há muito se desfizera, elas viviam juntas como amigas muito afeiçoadas, com Emma fazendo só o que queria; levava em alta consideração o julgamento de srta. Taylor, mas guiava-se apenas pelo seu próprio.
Os verdadeiros males da situação de Emma eram, na verdade, o poder de ter as coisas feitas a seu modo e uma disposição para pensar um pouco bem demais de si mesma; estas eram as desvantagens que ameaçavam limitar seus muitos divertimentos. O perigo, entretanto, passava tão despercebido no momento, que elas não o consideravam, de modo algum, como um infortúnio para a jovem.
A tristeza chegou – uma tristeza suave – mas não na forma de um pensamento indesejado: a srta Taylor casou.

Emma (1816), Jane Austen

O bom soldado, Ford Madox Ford, 1915

Esta e a história mais triste que já ouvi. Conhecíamos os Ashburnham de nove temporadas passadas em Nauheim com uma grande intimidade – ou melhor, com uma proximidade solta e fácil e ao mesmo tempo estreita como uma boa luva na mão. Eu e minha esposa conhecíamos o Capitão e a sra. Ashburnham tão bem quanto se pode conhecer qualquer pessoa e, por outro lado, não sabíamos absolutamente nada a respeito deles. Creio que uma situação como essa só é possível com ingleses a respeito de quem, ainda hoje, quando sento e tento decifrar o quanto sei sobre esse triste assunto, eu não sabia nada. Seis meses atrás eu ainda não conhecia a Inglaterra e, sem dúvida, jamais havia sondado as profundezas de um coração inglês. Eu conhecera apenas a superfície.

O bom soldado (1915), Ford Madox Ford
Capa do livro a Arte da ficção de David Lodge, com fundo preto e máquina de escrever com teclas na cor do arco-íris
Capa de A arte da ficção

O começo na escrita criativa

Antes de falarmos sobre o começo na escrita criativa é importante compreender por que é tão difícil esse princípio. O desafio fundamental nesta etapa do texto, a parte em que o leitor entra na obra, é, justamente, capturar a pessoa para dentro da narrativa.

Sempre bom lembrar, e Lodge sublinha isso, que nesta fase a leitura é sempre um pouco despretensiosa e um pouco desatenta, daí a necessidade de criar estratégias de sedução de leitor no texto.

Para diminuir a hesitação de quem lê, é necessário que o começo seja claro, estruturado e capaz de despertar curiosidade. Nada melhor do que aprender isso com mestres como Jane Austen e Ford Madox Ford.

Sutileza elegante de Jane Austen

Lodge define a escrita e a abertura de Jane Austen como clássica. “Lúcida, comedida, objetiva, com implicaturas irônicas escondidas por baixo da elegante luva de veludo do estilo. A sutileza com que a frase de abertura prepara a queda da heroína”, descreve o autor.

Três predicados de Emma Woodhouse, protagonista da ficção, deixam latentes a capacidade literária de Austen em criar uma situação que será tensionada poucos parágrafos a seguir: elegante, esperta e rica.

Elegante não é algo propriamente feminino, o que, nos explica Lodge, é algo que traz uma certa ambiguidade à personagem, afinal o termo escolhido foi “elegante” e não “bela” ou “encantadora”. A expressão “esperta” também é carregada de duplo sentido, afinal pode ter a ver com inteligência, mas é mais do que isso. Já o termo “rica” carrega todas as implicações bíblicas e sociais disso, em que não se trata propriamente de uma pessoa que podemos confiar cegamente.

Tudo isso ganha outros contornos, quando linhas mais tarde desse começo que não é exatamente curto, a autora escreve: “A tristeza chegou – uma tristeza suave – mas não na forma de um pensamento indesejado: a srta Taylor casou.” Ora, porque uma pessoa elegante, esperta e rica se entristece com o casamento? Este é o gancho que nos coloca imediatamente interessados em saber porque isso ocorre e quem é, de fato, Emma.

A ambiguidade como estilo em Madox Ford

Você pode até achar cabotina a estratégia de Ford Madox Ford, em O bom soldado, de começar o texto com “Esta é a história mais triste que já ouvi”. Mas ele vai além e é esse movimento que nos cativa para a obra. Em primeiro lugar porque não sabemos quem é a pessoa que está nos contando isso, logo o interesse inicial é, não por acaso, descobrir quem é essa pessoa.

Depois Lodge vai nos dando uma série de pistas para compreendermos porque esse começo é tão cativante. Em segundo lugar, por exemplo, sabemos que o narrador fala inglês, mas não é inglês. Um terceiro aspecto diz respeito a este narrador carregado de ambiguidade em que ficamos na dúvida se, no final das contas, a estória que ele vai contar não é a própria história.

Mais interessante nestes casos é que a ambiguidade do texto e do que está sendo contado converge para um imaginário que as pessoas dos EUA têm em relação aos ingleses da classe média, que é uma certa disparidade entre as aparências e o que são de fato. Em vez disso ficar expresso em uma frase literal, o tema é apresentado de maneira estilística, o que oferece mais efeitos de sentido e menos obviedade.


David Lodge segue o capítulo com uma série de exemplos fascinantes que valem à pena ser visitados na obra original.

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Roberson Frizero é escritor, tradutor, dramaturgo e professor de Criação Literária. É Mestre em Letras pela PUCRS e Especialista em Ensino e Aprendizagem de Línguas Estrangeiras pela UFRGS. Sua formação inclui bacharelado em Ciências Navais pela Escola Naval (RJ). Seu livro de estreia, Por que o Elvis Não Latiu?, foi agraciado pelo Prêmio CRESCER como um dos trinta melhores títulos infantis publicados no Brasil. Seu romance de estreia, Longe das Aldeias, foi finalista do Prêmio São Paulo de Literatura, do Prêmio Açorianos de Literatura e escolhido melhor livro do ano pelo Prêmio Associação Gaúcha de Escritores – AGES. Foi, por três anos consecutivos, jurado do Prêmio Jabuti, da Câmara Brasileira do Livro – CBL.

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