Como ler literatura – A importância dos “Começos” | Parte 2
| Este texto compõe um decálogo de dicas e sugestões de aprimoramento da leitura, crítica e produção literária. Os textos têm como base o livro Como ler literatura (L&PM, 2019), de Terry Eagleton |
Ainda estamos falando sobre começos, “a importância dos começos”, no capítulo inicial do livro de Terry Eagleton – Como ler literatura (Porto Alegre: L&PM, 2019), cuja Parte 1, publicamos semanas atrás. Se você ainda não leu a primeira parte, talvez fosse legal retomar o texto e depois seguir a partir daqui.
A ideia deste texto é trazer alguns exemplos de frases impactantes de começos de livros, seja para inspirá-los nas suas produções, seja como método de crítica literária.
Surpreendendo com uma “incorreção” verbal
Em poesia – aliás, em boa poesia – nada no universo do conteúdo dos poemas é por acaso. Convém estar atento a isso quando nos colocamos diante de um texto como esse. Emily Dickson, em um de seus poemas começa com a seguinte frase.
Minha vida findou duas vezes antes de seu fim
Emily Dickson
[My life closed twice before its close]
Eagleton nos alerta sobre como os tempos verbais nos “pregam peças” (p. 36) interessantes e sobre como uma frase como esta tem muito mais impacto do que escrever algo como “Antes de morrer, terei tido duas experiências tão dolorosas e devastadoras que poderão se comparar à própria morte” (EAGLETON, p. 36-37).
Vejam como um “simples” tempo verbal deslocado produz um texto de magnânima força.
Esse outro exemplo também nos ajuda a pensar como um texto simples, com palavras ordinárias, quando construído de maneira inteligente, produz efeitos de impacto. Vejamos o poema O casamento de Pentecostes, de Philip Larkin.
Naquele Pentecostes: me atrasei
Foi só então
À uma e vinte, sábado de sol-rei,
Três quartos vazio saiu meu vagão…
O poema começa com um pentâmetro iâmbico – métrica criada no século XVI para medir as sílabas de textos escritos em inglês – com dez sílabas métricas.
Na que le Pen te cos tes me’a tra sei
Mas logo em seguida o ritmo é quebrado com um verso pela metade, invertendo a expectativa que tínhamos em relação à construção do poema.
Fo i só em tão
Esse jogo com o leitor é o que torna, também, um texto literário digno de fascínio e admiração.
Emoção ou convenção social? Quais são as diferenças
Uma coisa que aprendemos após o romantismo é que há distinções entre emoção e convenção. Mas as coisas não são tão simples assim de separar. O que pretendo dizer com isso é que os sentimentos dos personagens não são apenas “pessoais”, mas obedecem também a determinados códigos culturais.
O que é importante compreender, talvez seja o fato de que a convenção não destrói o sentimento, mas ela torna as emoções socialmente aceitáveis de modo que as reações exageradas ou escassas tendam a soar como falsas.
Tendo isto em mente, o importante, então, é saber esses segredinhos para exagerar e escassear quando se quiser produzir esse efeito de sentido, no caso o de falsidade de um sentimento. Em suma, a forma como apresentamos os sentimentos impactam nos seus significados.
História ou condição humana universal? A que serve a literatura
A oposição entre a história, considerando toda sua multiplicidade, e a condição humana universal é, evidentemente, falsa, muito embora recorrente. Por outro lado, costuma-se pensar que uma peça ficcional, teatro especialmente, tenha sua força não por resgatar episódios históricos, mas por trazer à tona questões humanas atemporais.
Vejamos Becket e a primeira frase de Estragão a seu interlocutor Vladimir, na famosíssima peça Esperando Godot.
Nada a fazer.
Samuel Becket
Quem conhece um pouco da história do Ocidente na primeira metade do século XX logo recordará do ensaio O que fazer?, de Vladimir Lênin (homônimo ao interlocutor de Estragão) talvez o nome mais famoso das primeiras décadas do século passado.
Essa relação é sutil, mas sofisticada, mostra como história e ficção podem se conectar de maneira harmônica, mas sem se reduzir à pura militância, o que não é bom nem para causa, nem para a literatura.
Frase inicial arrebatadora no romance
Poucas obras começam de forma tão avassaladora e com uma frase inicial arrebatadora quanto romance Poderes terrenos (Rio de Janeiro: Record, 1980), de Anthony Burgess.
Era tarde de meu 81º aniversário e eu estava na cama com meu catamita, quanto Ali anunciou que o arcebispo tinha vindo me ver.
Anthony Burgess, Poderes Terrenos
Percebam a força deste começo. Ele reúne em apenas duas linhas e uma cena um homem octogenário, um jovem na idade da puberdade – catamita é exatamente isso, um amante jovem – e um arcebispo. Que personagem é esse, que é digno da visita do arcebispo? Com poucas palavras se pode criar um contexto de profunda densidade e que joga o leitor direto para dentro da história.
1984, George Orwell
No célebre 1984 de George Orwell, esse efeito de espanto ocorre com o uso de única palavra. Vejamos.
Era um dia frio e claro de abril, e os relógios batiam as treze. Winston Smith, com o queixo enterrado no peito para tentar escapar ao vento pérfido, enfiou-se depressa pelas portas envidraçadas das Mansões Vitória, mas não tão depressa para impedir que um torvelinho de areia poeirenta entrasse junto com ele.
George Orwell, 1984
É a palavra “treze” que torna esse primeiro parágrafo interessantíssimo, pois, a rigor, o relógio nunca bate às 13h (exceto os digitais, o que não é o caso do exemplo do livro). Esse pequeno detalhe, torna tudo mais extraordinário e cria uma sensação de estranheza nos leitores.
Uma curiosidade interessante, que Eagleton (p. 49) nos brinda em uma nota de rodapé se refere à expressão the thirteenth stroke of the clock, em termos judiciais, refere-se a uma declaração flagrantemente impossível de uma das partes, o que gera a desconfiança e o descrédito das declarações anteriores.
Critérios de avaliação de começos para uma crítica literária
A seguir, listamos algumas possibilidades de estratégias e construção de critérios para uma crítica literária. Todos os tópicos são transcrições da obra Como ler literatura (p. 51) que estamos estudando, mas o mais importante, para além destas sugestões, é ter em mente uma sensibilidade aguçada para a linguagem.
- Pode-se avaliar a textura sonora de uma passagem
- Pode-se analisar o que parecer ser ambiguidades significativas
- Pode-se examinar o uso da gramática e da sintaxe
- É possível observar as atitudes emocionais que uma passagem parece adotar diante do que está apresentado
- É possível enfocar alguns paradoxos, discrepâncias e contradições reveladoras
- Às vezes, pode ser importante rastrear implicações tácitas do que está sendo dito
- Julgar o tom de uma passagem, suas mudanças e variações, pode ser igualmente produtivo
- Pode ser proveitoso tentar definir o tom exato de um texto
Como ler literatura – Terry Eagleton
SINOPSE: A maioria dos livros introdutórios sobre teoria ou análise literária comete o mesmo pecado capital: tentar normatizar e prender numa grade de critérios fixos algo que é de uma riqueza vastíssima, viva, subjetiva e variável, como são as grandes obras da literatura. Terry Eagleton, professor e crítico de larga experiência, autor de Teoria da literatura: uma introdução (até hoje uma das grandes referências na área), não incorre nesse erro. Em Como ler literatura, embora seja uma obra introdutória, vemos que o autor não apenas conhece muito bem sua matéria, como tem sensibilidade suficiente para não matar o objeto de estudo ao dissecá-lo.
Clube de criação literária
O Clube de Criação Literária é uma dessas ações de mecenato coletivo – neste caso, em favor do escritor e tradutor Robertson Frizero. Mas, como o próprio nome sugere, é uma ação de mecenato que traz, também, uma ideia inovadora no campo da formação continuada em Escrita Criativa.
Associando-se ao Clube, o participante colabora com o mecenato coletivo e tem acesso a conteúdo exclusivo sobre Criação Literária:
- Material didático, artigos e resenhas de livros de interesse na área de Criação Literária;
- Reuniões on-line e debates sobre Criação Literária, Literatura e Mercado Editorial;
- Vídeos, áudios, apresentações e sessões de mentoria literária em grupo;
- Sorteios mensais de livros e serviços de mentoria literária individual e leitura crítica.
Desafio de literatura 2021: envie suas resenhas e ganhe prêmios
Conhece o Desafio de literatura 2021 do site Frizero? Você pode publicar sua resenha literária em nossa página e de quebra ganhar o livro Dostoiévski – Correspondências (1838-1880), do escritor russo que completa duzentos anos de nascimento em 2021. A edição foi traduzida por Robertson Frizero.
Como devo escrever e enviar minha resenha
No mês de outubro, o desafio é ler um Um livro de terror escrito por um autor brasileiro.
Para participar basta enviar seu texto para sitefrizero@gmail.com com o assunto [DESAFIO DE LITERATURA – NOME DO PARTICIPANTE].
Lembre-se deixar no formato .doc com a seguinte formatação: Times New Roman, 12, espaçamento 1.5, título e autor no nome do arquivo.
Caso sua resenha seja escolhida para publicação, você receberá um e-mail solicitando dados para o recebimento da premiação.
Robertson Frizero
Robertson Frizero é escritor, tradutor e professor de Criação Literária. Sua primeira oficina foi lançada em 2011, e desde então se manteve em atividade contínua, entre oficinas, cursos, palestras e mentorias literárias. Foi jurado do Prêmio Jabuti de Literatura por três anos consecutivos e jurado do Prêmio Açorianos de Literatura. É Mestre em Letras pela PUCRS e especialista em Ensino e Aprendizagem de Línguas Estrangeiras pela UFRGS.
Frizero é autor de romances e livros infantis premiados, e já publicou também poesia, contos e textos teatrais. Seu livro de estreia, o infantil Por que o Elvis Não Latiu? [8INVERSO, 2010], foi agraciado com o Prêmio Crescer. Seu romance de estreia, Longe das Aldeias [Dublinense, 2015], ganhou o Prêmio AGES de melhor romance do ano pela Associação Gaúcha de Escritores – AGES e foi finalista dos prêmios São Paulo de Literatura e Açorianos de Literatura. Longe das Aldeias foi também escolhido pelo Governo Federal para distribuição à Rede Pública de Ensino no PNDL Literário 2018. Em 2020, Longe das Aldeias foi traduzido para o árabe e publicado no Kuwait e Iraque, com distribuição para todo o mundo árabe.
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