Robertson Frizero

Escritor, tradutor, dramaturgo e professor de Criação Literária

Romancista brasileiro Robertson Frizero: “Decidi deixar a literatura depois de ler Marcel Proust”

Entrevistado por Muhammad Ke Yilan

Esta entrevista foi publicada originalmente em árabe no site Almada Paper, do Iraque.


Jornalista Muhammad Ke Yilan /  Almada Paper Iraque
Jornalista Muhammad Ke Yilan

A renovação e o florescimento na literatura requerem abertura para outras civilizações e comunicação com suas realizações intelectuais e culturais (…). A tradução desempenha um grande papel neste nível, à medida em que o conceito de literatura adquire uma nova dimensão com a consciência de diferentes formas expressivas no contexto da diversidade cultural e o ímpeto do movimento narrativo aumenta. Recentemente foi publicado em árabe o romance Longe das Aldeias, o primeiro do escritor brasileiro Robertson Frizero. Tivemos um diálogo sobre sua experiência de escrita, sua relação e o papel da consciência criativa na realização do projeto do romance.

Como você entende o grande interesse pela arte do romance em nível global? Esse gênero literário substituiu o mito no mundo contemporâneo?

Algumas décadas atrás, muitos pensadores anteciparam o fim do livro. Primeiro, eles disseram que os e-books colocariam em risco os livros em papel. Em seguida, eles anunciaram que as mídias sociais e os serviços de streaming seriam seus maiores concorrentes. Mas o livro permaneceu e as vendas aumentaram em 2020 – sem mencionar que o livro em papel ainda é mais forte do que o e-book.

A razão é muito simples: os humanos adoram histórias. Embora estejamos vivendo em uma espécie de “era audiovisual” nas artes e no entretenimento, mídias importantes como o cinema e a televisão ainda dependem dos escritores para satisfazer sua fome por novos e bons materiais. Na verdade, o interesse pelo romance está aumentando atualmente porque o leitor adora viver a história mais do que apenas ler – e o romance é o gênero literário que permite isso de uma forma mais fácil.

A ficção de Paulo Coelho atraiu um grande público de leitores. Você acha que o autor de “O alquimista” conseguiu uma mudança no estilo de escrever o romance?

Existe um velho ditado em português, comumente usado no Brasil, que diz: Santo de casa não faz milagre. (…) Paulo Coelho é um exemplo perfeito desse ditado popular: os leitores de língua árabe podem ficar chocados ao saber que, apesar de todos os sucessos que Coelho alcançou ao redor do mundo, muitas pessoas no Brasil desprezam seus livros como “literatura ruim” – especialmente na academia (digo isso porque sei o quão popular ele é em todo o Oriente Médio.)

Puro preconceito. Ele é um escritor muito criativo e acho que seu sucesso se deve ao fato de ter optado por trabalhar com temas globais e não ter medo de contar uma história. Tem sucesso especialmente quando se debruça sobre questões do lado sagrado e espiritual da experiência humana – algo que os autores contemporâneos ignoram… De fato, em termos do uso da linguagem e do tema de suas obras, Coelho está de alguma forma apartado do que chamamos de literatura brasileira contemporânea – mas ele não se importa com isso, de maneira alguma. Não gosto muito de seus livros (há muitos escritores no Brasil que têm obras mais interessantes, tanto na criatividade quanto no uso inovador da linguagem), mas agradeço muito a Paolo Coelho: ninguém pode negar que seu sucesso abriu portas para escritores brasileiros em todo o mundo – agora temos autores como Machado de Asis e Clarisse Lispector traduzidos para o árabe, por exemplo. Acho que a influência dele foi importante até para que se publicasse o meu romance em árabe.

Seu romance Longe das Aldeias é repleto de personagens, mas Marija, a mãe, assume uma posição central no espaço narrativo e o filho se identifica com a memória dela. Você queria apresentar um outro tipo de heroísmo?

Cada guerra está cheia de heróis, e a maioria deles não está nos campos de batalha. Este romance está cheio desses heróis. Eu queria escrever um livro sobre os efeitos da guerra e não apenas sobre as pessoas que viveram durante a guerra, mas também sobre as gerações subsequentes. O livro contém dois temas importantes: a maneira como nós, humanos, podemos construir memórias a fim de tornarmos nossas vidas toleráveis, e também as diferentes maneiras como as pessoas respondem (e se reconstroem) quando confrontadas com tragédias da vida real. O primeiro tema surge através da relação entre o narrador e o herói, Emmanuel, e sua mãe, Marija. O segundo tópico é apresentado por Marija e sua irmã Mirna.

Capa do livro Longes das Aldeias
Capa do livro Longes das Aldeias

Em certo sentido, não é um livro sobre uma guerra específica – nunca menciono a origem da família imigrante ou sua formação cultural e espiritual, embora os leitores de língua árabe identifiquem facilmente algumas das tradições islâmicas que às vezes são mencionadas no romance. A história é inspirada por uma guerra histórica verdadeira e moderna, mas na verdade é sobre todas as guerras – passadas e futuras – e suas terríveis consequências para os civis. Falando dos heróis do livro, tenho certeza de que o leitor encontrará algumas situações muito heroicas ao longo de toda a história – não atos teatrais com heroísmo lendário e glórias de soldados e mártires, mas simples bravura de cidadãos comuns e que pode salvar vidas. Prefiro deixar que os leitores julguem cada personagem separadamente em suas escolhas.

Entrevista Robertson Frizero ao jornal Almada Paper do Iraque
Reprodução da versão impressa da entrevista Robertson Frizero ao jornal Almada Paper do Iraque

Por quais romancistas você é influenciado e existem nomes da Ficção contemporânea que te interessas em seguir seus trabalhos? E a tua relação com a cultura árabe?

Decidi deixar a literatura depois de ler Marcel Proust, mas, ao mesmo tempo, a sensação de que ele havia escrito o romance mais extraordinário de todos os tempos me incentivou a nunca desistir. Pensei: “Marcel Proust alcançou o topo do Everest no romance, então não preciso atingir esse objetivo… e posso escrever apenas para me divertir!” Eu tinha quinze anos e era completamente ingênuo na época, mas Proust sempre foi uma referência importante. No entanto, as obras de outros romancistas foram influências mais decisivas em minha escrita do que Proust: E. M. Forster, Machado de Assis, Mark Twain, Tony Morrison, Fiódor Dostoiévski, Honoré de Balzac, Gabriel García Marquez.

Por falar em autores contemporâneos, gosto muito de dois autores completamente diferentes: o escritor afegão Atiq Rahimi e o escritor português José Luís Peixoto. Eu li quase tudo que eles escreveram até agora. Outros grandes nomes que sigo com profundo interesse: Rody Doyle, Filipa Melo, Mario Vargas Llosa, Mia Couto, Michel Laub, Kazuo Ishiguro e Ian McEwan, para citar alguns.

A literatura fez eu me sentir mais próximo da cultura árabe. Isso começou com um livro infantil, escrito por um autor brasileiro sob o pseudônimo de “Malba Tahan” – o livro é um romance repleto de problemas matemáticos para o leitor resolver, e toda a história se passa em uma lendária terra árabe. Este livro me encantou. Depois disso, fui tragado para As mil e uma noites

Outros escritores brasileiros como Milton Hatoum e Raduan Nassar têm chamado minha atenção para o mundo dos imigrantes árabes no Brasil. Gosto especialmente de Hatoum, que escreve sobre a vida de imigrantes de língua árabe na selva amazônica, o que é um assunto bastante singular. Isso me motivou a seguir em frente e aprender mais. Ainda sonho em visitar essa parte do mundo que me fascina tanto e fiquei muito feliz quando recebi a notícia de que meu livro estava sendo publicado em árabe no Kuwait. Espero que este livro crie um vínculo vital e duradouro entre eu e os leitores de língua árabe.

Roberton Frizero – escritor

Retrato de Robertson Frizero
Robertson Frizero

Roberson Frizero é escritor, tradutor, dramaturgo e professor de Criação Literária. É Mestre em Letras pela PUCRS e Especialista em Ensino e Aprendizagem de Línguas Estrangeiras pela UFRGS. Sua formação inclui bacharelado em Ciências Navais pela Escola Naval (RJ).

Seu livro de estreia,  Por que o Elvis Não Latiu?, foi agraciado pelo Prêmio CRESCER como um dos trinta melhores títulos infantis publicados no Brasil.

O romance de estreia, Longe das Aldeias, foi finalista do Prêmio São Paulo de Literatura, do Prêmio Açorianos de Literatura e escolhido melhor livro do ano pelo Prêmio Associação Gaúcha de Escritores – AGES. Foi, por três anos consecutivos, jurado do Prêmio Jabuti, da Câmara Brasileira do Livro – CBL.


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Roberson Frizero é escritor, tradutor, dramaturgo e professor de Criação Literária. É Mestre em Letras pela PUCRS e Especialista em Ensino e Aprendizagem de Línguas Estrangeiras pela UFRGS. Sua formação inclui bacharelado em Ciências Navais pela Escola Naval (RJ). Seu livro de estreia, Por que o Elvis Não Latiu?, foi agraciado pelo Prêmio CRESCER como um dos trinta melhores títulos infantis publicados no Brasil. Seu romance de estreia, Longe das Aldeias, foi finalista do Prêmio São Paulo de Literatura, do Prêmio Açorianos de Literatura e escolhido melhor livro do ano pelo Prêmio Associação Gaúcha de Escritores – AGES. Foi, por três anos consecutivos, jurado do Prêmio Jabuti, da Câmara Brasileira do Livro – CBL.

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